quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Remexendo águas

XII – O Pendurado

Em um alvorecer chuvoso, da janela embaçada, avisto a lagoa. Ela está fria e prata, como o vidro alagado que minha mão esfrega para conseguir enxergá-la melhor.

Assim também me encaro: esfregando alagamentos! Olho para minhas águas, remexo-as tentando vê-las cada vez mais nítidas, tentando ver o fundo das minhas poças.

Mas como é difícil me aventurar em mim! Quão mitológico sou! Sinto-me tão como Prometeu: castigado pelos deuses!

Estou preso no alto de um morro, pendurado pela perna e, toda manhã, uma águia vem e alimenta-se do meu fígado. Durante a noite, ele se regenera e, no dia seguinte, sou novamente banquete.

Contudo, apesar desse sacrifício, evoluo: aquilo, que consome minha matéria, alimenta meu espírito. Cada fígado traz mais rio e menos poças.

Pois de ponta cabeça, acabei por colocar as minhas raízes no céu e o meu sol, em grãos de barro. Desse modo, com a cabeça para baixo, minha alma vai se alinhando ao meu corpo, e esses dois seres tão distintos vão aprendendo a caminhar juntamente.

Florianópolis, inverno de 2015.

Revisto e revisado, setembro/outubro de 2022.


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