XII – O Pendurado
Em
um alvorecer chuvoso, da janela embaçada, avisto a lagoa. Ela está fria e
prata, como o vidro alagado que minha mão esfrega para conseguir enxergá-la
melhor.
Assim
também me encaro: esfregando alagamentos! Olho para minhas águas, remexo-as tentando
vê-las cada vez mais nítidas, tentando ver o fundo das minhas poças.
Mas
como é difícil me aventurar em mim! Quão mitológico sou! Sinto-me tão como
Prometeu: castigado pelos deuses!
Estou
preso no alto de um morro, pendurado pela perna e, toda manhã, uma águia vem e
alimenta-se do meu fígado. Durante a noite, ele se regenera e, no dia seguinte,
sou novamente banquete.
Contudo,
apesar desse sacrifício, evoluo: aquilo, que consome minha matéria, alimenta
meu espírito. Cada fígado traz mais rio e menos poças.
Pois
de ponta cabeça, acabei por colocar as minhas raízes no céu e o meu sol, em
grãos de barro. Desse modo, com a cabeça para baixo, minha alma vai se
alinhando ao meu corpo, e esses dois seres tão distintos vão aprendendo a
caminhar juntamente.
Florianópolis,
inverno de 2015.
Revisto e
revisado, setembro/outubro de 2022.
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